quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Quarto poder. Mas, que poder?

Por Sidnei Liberal

O jornal argentino Página 12, do dia 17 de setembro, publicou texto do seu correspondente Dario Pignotti sob o título “O Presidente enfrenta a rede Globo de televisão no Brasil”. Por ele, os argentinos ficaram sabendo que Tancredo Neves, um democrata moderado, defendia uma posição concessiva em relação a Roberto Marinho “para garantir o futuro das instituições”. Ficaram sabendo que o casamento ideológico e econômico entre Marinho e os militares golpistas de 64 resultou na constituição do maior império da informação na América do Sul e garantiu aos milicos uma defesa permanente da mais longa e perversa ditadura da nossa história.

Após 20 anos de ditadura, a Globo ainda pregava uma abertura “lenta, gradual e segura”, a despeito de nessa época o povo já estar nas ruas exigindo “Diretas Já”. A sabotagem informativa foi o tratamento dado pela Globo aos protestos que levaram milhões de manifestantes às ruas em 1983 e 1984. Impedindo a divulgação de massivas concentrações, a emissora tentava obstruir o caminho brasileiro para uma democracia plena. Já em 1989, para impedir uma provável vitória do candidato Lula, a Globo construiu um candidato novelesco, o Collor, filho da velha oligarquia alagoana, que o marketing global transformou em “caçador de marajás”.

A destreza desinformativa dispensada à época inspirou um documentário da BBC intitulado Muito Além do Cidadão Kane. Da mesma forma que Tancredo em 1985 Lula percebeu, em 1989, que a dinastia Marinho não era apenas um grupo de comunicação influente, mas um partido político de fato. Em outubro de 2006 o presidente Lula se permitiu afrontar a Globo e não participar do seu debate. Mais que um gesto ousado, uma sinalização política. “A vitória de Lula marcou um fato sem precedentes na história eleitoral recente: foi o primeiro candidato que se impôs contra a vontade explícita dos senhores da informação”, diz Pignotti.

Parece que não é somente no Brasil que acontece o implacável e progressivo enfraquecimento da grande imprensa. Conforme revela a BBC, as tiragens reduzidas, a fragmentação do mercado, o distanciamento entre veículos e público, são as várias razões para o enfraquecimento do poder da imprensa. Em julho, The New York Times defendeu em editorial a saída das tropas do Iraque. O impacto foi mínimo, como se governo e sociedade pouco ligassem para o que pensa o mais importante jornal do país. O poder de influenciar é muito menor numa era em que pressões políticas parecem vir de canais de notícias de TV a cabo e da internet.

Em junho deste ano, El País publicou texto de Ignacio Ramonet, de Le Monde Diplomatique, sob o título Meios de Ódio, onde revela que na Venezuela, antes da não renovação da concessão à Rádio Caracas Televisão (RCTV), onde 80% das estações de televisão eram utilizadas pelo setor privado, a absorção dos meios de comunicação pelas grandes empresas foi convertendo o direito de informar em um privilégio empresarial, mais que em um legítimo direito cidadão. Ao ponto de organismos independentes, como o Observatório Global dos Meios (MGW), identificarem provas de conjura midiática que propiciou o golpe de estado de 11 de abril de 2002.

A grande mídia venezuelana, mediante envenenadas manipulações, difundia falsidades e calúnias destinadas a fomentar a execração e a ojeriza contra o presidente Chávez e seus partidários. Para Ramonet, um típico “meio do ódio”, incutindo na opinião pública instintos primários, exercitando e promovendo uma violência que poderia desembocar em guerra civil. Paradoxalmente, na contramão do grande movimento midiático, o presidente Chávez tem sido exaustivamente aprovado em sucessivos embates democráticos onde a presença de observadores internacionais tem sido uma regra. O último embate: Chávez reeleito por quase dois terços.

Em entrevista ao Le Monde Diplomatique, Noam Chomsky debate o papel da mídia, outrora a grande fábrica de consensos, na preservação do capitalismo, o desgaste do governo Bush e o papel do Estado numa nova sociedade. A primeira pergunta foi sobre a questão da mídia, posto que na França, por ocasião do referendo sobre o Tratado da Constituição Européia, a maioria dos meios de comunicação era partidária do “sim”. No entanto, 55% dos franceses votaram “não”. Ao que parece, contrariando o poder de manipulação da mídia. Pergunta do LMD: Esse voto dos cidadãos representaria um “não” também aos meios de comunicação?

No Brasil, a injeção de 325 milhões de dólares, de movimentações mercadológicas próprias – os populares perpetual bonds – tapou, temporariamente o rombo falimentar da Globo. Revigorada, a empresa passou a liderar esforços da mídia brasileira e da oposição pela candidatura tucana. Esforços que resultaram em levar a disputa ao segundo turno. Não conseguiu mais que isso e perdeu uma vez mais. Em seu estágio falimentar, o governo FHC não conseguiu completar seu processo de salvamento via BNDES e Lula, o sucessor petista, não se interessou. No primeiro caso, tempos de quebradeira. No segundo, incompatibilidade ideológica.

Já estamos há uma boa distância dos tempos do afável Tancredo que se rendia ao baronato da mídia com excessiva mesura. Também já é peça de museu a ameaça à segurança institucional, figura de retórica que mascarava a espúria parceria na órbita do poder. A Globo de hoje está escorada na ciranda financeira e em 60% dos seus “reclames” empresariais nacionais, que já se mostram exíguos para manter sua folha de pagamentos e para enfrentar a concorrência que já está em seus calcanhares. Hoje sem as generosas verbas de antigas e promíscuas relações com o poder, sem a generosa da unanimidade popular dos tempos de Roque Santeiro.

Nossos tempos são marcados por um grande fosso erguido pelos meios de comunicação que priva o cidadão do direito fundamental de ser informado. A grande mídia transformada em instrumento de venda: a notícia é a mercadoria. O cidadão, simples consumidor. Não mais o compromisso com a verdade, com a diversidade da opinião: abolido o caráter informativo, sobra o editorialismo mono-ideológico, a matéria opinativa pura. Democracia às favas, a credibilidade, também. Que fazer? A Venezuela mostra um caminho: lá, a mídia já não é um 4º poder em seu sentido clássico. A mídia é o que deve ser: uma concessão pública de serviços.

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