FIO DESENCAPADO
Caro Renaldi.
Você não era ainda nascido. Chovia e eu, menino dos meus sete anos, com
meu pai e alguns pessedistas, ouvia atento um rádio à válvula.
Contava-se nos dedos de uma mão os rádios existentes na nascente cidade
de Tabira (aqui, cito a tecnologia de válvula para lembrar que naquelas
distâncias ouvíamos mais ruídos que os comícios de Cristiano Machado
para presidente da república, do velho PSD mineiro, no tempo em que
essas três letras, como as outras, mereciam mais respeito. Descaminhos
da política, no entanto, pra desespero de Seu Vino, avô de Savio e Semiramis, bisavô de Yuri,
fez a disputa polarizar-se entre o Brigadeiro, UDN, e Getúlio, PTB.
Acho que em política você já ouviu falar do termo ‘cristianização’, foi
essa a primeira. Uma pequena digressão: Seu Vino saía lá da rua de Cima,
vizinho que era de Zequinha Pires,
udenista e dono de outro rádio, de vávulas, penso que o terceiro era de
Caneca ou de Otacílio, também para ouvir sobre política e os jogos da
copa de 50, disputada no Brasil, nossa grande decepção. Bom, Seu Vino,
com suas conhecidas sandálias de rabicho, vinha pra nossa sala, na rua
de Baixo, para escutar o nosso rádio, de válvulas, não sem antes dizer
“- Eita, radiozinho udenista, aquele de Zequinha!”. É que o dono do
rádio preferia as transmissões dos comícios do Brigadeiro. E além disso,
a mídia daquele tempo, diferentemente da de hoje, não tinha vergonha de
dizer de que lado estava).
Voltando à nossa audiência radiofônica coletiva: um raio acabara de produzir os maiores ruídos que já ouvíramos naquele rádio, como em todos os rádios à válvula, e seria
ótimo que fosse apenas esse o problema. Foi bem além e derrubou um poste
de energia com fio desencapado na rua lamacenta, entre nossa casa e o
bangalô de Miguel Batista, ou a casa de Severino Pires
com muita água descendo a rua, agora totalmente escura. Cena rápida em
minha lembrança de criança: duas mocinha mortas, um soldado bêbado,
talvez por isso mesmo com o corpo apenas chamuscado por descargas
elétricas. E o pior: o desespero de uma mãe pela tragédia das filhas.
Diz Marcílio que inda hoje, sessenta anos depois, ela mora saudosa na
rua da Granja.
Anos depois, eu mais grandinho, à época meio
assanhado quando via uma menininha bonita, fiquei doido quando vi a
beleza de Salomé, menos 15 anos, eu um pouco mais, ela dos Leite, de
Tuparetama (ainda se chamava Bom Jesus?). O problema é que outros dois
meninos que, para efeito didático lhes daremos os nomes Carlos e João,
também se assanharam pela beleza da menina. Pra encurtar, mais atrevido
que era, ganhei a parada, além do namoro mais ingênuo e a menina mais
linda de todo o universo. Pouco tempo depois, acho que logo após as
férias, voltando ao internato em Pesqueira e Caruaru, Carlos, João e eu,
recebemos, atônitos, a notícia da igualmente fulminante e trágica morte
de Salomé, por descarga elétrica de fios desencapados nas ruas de
Tuparetama.
O sentimento de tragédia, da noite de ontem, a morte
prematura de um jovem advogado, no Recife que se quer moderno, trouxe-me
essas lembranças dos tempos de menino. Quando e onde somente havia
rádios à válvula e uma rua de Cima, outra de Baixo. Onde percorriam,
descuidadas, as meninas mais lindas do mundo.
PANO RÁPIDO:
Avenida Visconde de Jequitinhonha - Recife - 11/06/2013
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